Um homem percorre o interior de um círculo de mesas de xadrez, observando cada uma delas por dois ou três segundos antes de fazer seu lance. Na borda externa, dezenas de amadores estudam a resposta que darão até ele completar o circuito. O ano é 1909, o homem é José Raúl Capablanca, de Cuba, e o resultado é uma verdadeira surra: 28 vitórias em 28 partidas. A exibição fez parte de uma turnê em que Capablanca venceu 168 partidas consecutivas.
Como ele consegue jogar tão bem e tão rápido? E quantos movimentos adiante, era capaz de calcular sob tais pressões? “Vejo apenas um lance a frente”, Capablanca teria respondido, mas sempre o lance certo!
Ele sintetizou assim o que um século de pesquisas psicológicas posteriores acabou concluindo: grande parte da vantagem de um mestre do xadrez em relação aos novatos deriva dos primeiros segundos de pensamentos. Essa percepção rápida, guiada pelo conhecimento, as vezes denominada apercepção, também pode ser vista em pessoas brilhantes em outros campos. Assim como um mestre consegue lembrar todos os lances de uma partida que disputou, um virtuose muitas das vezes reconstitui a partitura de uma sonata ouvida uma só vez. E assim como o enxadrista costuma encontrar o lance melhor num piscar de olhos, o médico experiente consegue as vezes fazer um diagnostico preciso momentos após pôr os olhos num paciente.
Como esses indivíduos exímios em suas áreas adquirem suas habilidades extraordinárias? O que é mais importante, o talento inato ou o treinamento intensivo?
Psicólogos procuraram responder essas perguntas estudando mestres de xadrez. Os resultados coletados em 100 (cem) anos de pesquisas levaram a novas teorias sobre como a mente organiza e recupera informações. Eles também podem ter implicações importantes na área da educação. Talvez as técnicas que os enxadristas usam para aperfeiçoar suas habilidades tenham aplicado no ensino da leitura, da escrita e da aritmética.
A Drosófila da Ciência Cognitiva – A história da natureza humana começa pela caça, crucial para sobrevivência de nossos ancestrais. Até hoje o caçador experiente não sabe apenas onde o leão esteve, ele consegue inferir para onde ele irá. As habilidades de rastreio aumentaram, como mostram repetidos estudos, a partir da infância , “de maneira linear, até em torno de 35 anos, quando chegam no pico”, afirma John Bock, antropólogo da Universidade Estadual da Califórnia, em Fullerton.
Isso é bem mais tempo do que se leva atualmente para treinar um neurocirurgião.
Sem uma habilidade claramente superior á do novato, não pode haver pessoas excepcionais, apenas leigos cheios de diplomas. Esses infelizmente são muitos comuns. Estudos rigorosos nas duas últimas décadas mostraram que analistas profissionais do mercado de ações não lucram mais que amadores, enólogos famosos não distinguem vinhos muito melhor que simplórios apreciadores da bebida e psiquiatras não tratam os pacientes de modo mais eficaz que profissionais com formação menos avançada. Mesmo quando a habilidade inegavelmente faz a diferença – como, digamos, no ensino ou na administração de empresas -, ela costuma ser difícil de medir, e mais ainda de explicar.
A destreza no xadrez, por outro lado, pode ser medida dissecada em componentes, submetida a experimentos em laboratórios e prontamente observada em seu ambiente natural, o salão de torneio. Por essas razões, o jogo é ideal para testar as teorias do pensamento: uma espécie de “drosófila da ciência cognitiva”.
A medição da proficiência no xadrez atingiu sofisticação maior que em qualquer outro jogo, esporte ou atividade competitiva. Fórmulas estatísticas comparam os resultados recentes de um jogador com os mais antigos e descontam sucessos de acordo com a força dos adversários. Elas levam a previsões confiáveis do resultado das partidas. Se um jogador “A” supera o jogador “B” por 200 pontos, ele vencerá em média 75% de suas partidas contra o jogador “B”. Essas previsões se verificam tanto em jogadores de alto nível, quanto em jogadores comuns.Assim Garry Kasparov, o ex-campeão mundial russo cuja avaliação é de 2812, vencera 75% de suas partidas contra o grande mestre Jan Timman, da Holanda, que foi naquela oportunidade classificado em 100 lugar com avaliação de 2616. De forma semelhante, nos Estados Unidos, um jogador de torneios mediano (1200 pontos) ganhará 75% das vezes contra alguém com avaliação de 1000. As avaliações permitem aos psicólogos estimar a destreza com base no desempenho, e não na reputação, e rastrear mudanças de habilidade de um dado jogador no decorrer de sua carreira.
Um motivo final pelo qual os cientistas cognitivos escolheram o xadrez como modelo – e não, digamos, o bilhar – é sua reputação de “a pedra de toque do intelecto”, nas palavras do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe.
As façanhas dos mestres do xadrez há muito são atribuídas a poderes mentais quase mágicos. Essa magia transparece especialmente nas chamadas partidas cegas, em que os jogadores não podem ver o tabuleiro. Em 1894, o psicólogo francês Alfred Binet, um dos inventores do primeiro teste de inteligência, pediu que mestres descrevessem como jogavam aquelas partidas. Ele partiu da hipótese de que eles conseguiam uma imagem quase fotográfica do tabuleiro , mas logo concluiu que essa visualização era bem mais abstrata . Em vez de ver a crina do cavalo ou a granulação da madeira de que é feito, o mestre tem apenas geral de onde a peça esta em relação a outros elementos da posição. È o mesmo tipo de conhecimento implícito que o passageiro tem das paradas numa linha de metrô.
O mestre de partidas cegas complementa tal conhecimento com detalhes da partida atual, além de lembranças de aspectos importantes de partidas passadas. Digamos que esqueça a posição exata de um peão. Ele consegue encontra-la analisando, por assim dizer, a estratégia antecipada da abertura –uma fase bem estudada da partida com um numero relativamente limitado de opções. Ou pode lembrar a lógica por trás dos lances anteriores -talvez raciocinando: “Não consegui capturar seu bispo dois lances atrás. Logo, aquele peão devia estar no caminho...”. Ele não precisa lembrar cada detalhe todas as vezes, porque consegue reconstruir a vontade qualquer detalhe especifico recorrendo a um sistema bem organizado de associações.
Evidentemente, a posse de conhecimentos tão intrincadamente estruturados, que explicam apenas o sucesso no jog cego, mas também habilidades como cálculo e planejamento, implica que a destreza no jog depende mais de treinamento especializado que capacidades inatas. O psicólogo holandês Adriaan de Groot, ele próprio um mestre enxadrista, confirmou essa idéia em 1938, quando aproveitou um grande torneio na Holanda para comparar jogadores médios e fortes com os principais grandes mestres do mundo. Uma forma de faze-lo foi solicitar que os jogadores descrevessem seus pensamentos enquanto examinavam uma posição extraída de uma partida do torneio. Ele descobriu que, embora, experts –a classe logo abaixo de mestre – analisassem muito mais possibilidades que os jogadores mais fracos, o aumento na abrangência da analise era bem menor quando se comparavam com mestres e grandes mestres. Os jogadores melhores não examinavam mais possibilidades, apenas possibilidades melhores – como Capablanca havia alegado.
Pesquisas recentes mostram que as descobertas de Groot refletem, em parte, a natureza das posições escolhidas nos testes. Uma posição onde cálculos números e exatos sejam decisivos permite aos grandes mestres mostrar seu diferencial e examinar mais profundamente a árvore ramificada de lances possíveis que um amador conseguiria. Da mesma forma, físicos de longa data podem, em certas ocasiões, considerar mais possibilidades do que estudantes de física. Em ambos os casos, o que distingue a habilidade especial não é o poder de análise intrinsecamente mais forte, mas um estoque de conhecimentos estruturados. Quando confrontado com uma posição difícil, um jogador mais fraco poderá raciocinar por maia hora , muitas vezes imaginando vários lances a frente, e mesmo assim não descobrir a continuação mais acertada, enquanto um grande mestre, vê o lance imediatamente sem analisar nada de forma consciente.
De Goot também pediu que seus voluntários examinassem uma posição por um período limitado e depois tentassem reconstitui-la de memória. O desempenho dos jogadores, desde os novatos até os grandes mestres, foi avaliado. Os principiantes eram capazes de lembrar pouquíssimos detalhes da posição, mesmo depois de a examinarem por 30 segundos, enquanto os grandes mestres, ainda que a tivessem visto por apenas poucos segundos, recordavam-se dela perfeitamente. Essa diferença identifica uma forma particular de memória, especifica ao tipo de posições do xadrez que ocorrem comumente no jogo. Tal memória especifica deve resultar de treinamento, já que grandes mestres não se saem melhor que outras pessoas em testes de memória geral.
Resultados semelhantes foram obtidos com jogadores de bridge (capazes de lembrar cartas que tiraram em vários jogos), programadores de computador (que reconstituem grande porções de programas) e músicos (que conseguem lembrar longos trechos de musica). De fato, a memória para o assunto de um campo especifico constitui um critério comum para avaliar a destreza.
A conclusão de que experts recorrem mais ao conhecimento estruturado que a analise respaldada por um estudo de caso raro que envolve um enxadrista inicialmente fraco, identificado apenas pelas iniciais D.H. No decorrer de nove anos ele veio a se tornar um dos maiores mestres do Canadá, em 1987. Neil Charness, professor de psicologia da Universidade Estadual da Flórida, mostrou que, apesar de aperfeiçoar seu desempenho, o jogador não analisava as posições do tabuleiro mais amplamente que antes. Em vez disso, possuía um conhecimento bem melhor das posições de xadrez e de suas estratégia típicas.
LIÇÕES DO XADREZ:
· Como a habilidade pode ser medida facilmente e submetida a experiências de laboratório, o jogo se tornou um campo de testes importantes para teorias nas ciências cognitivas.
· Pesquisadores encontraram indícios de que os grandes mestres do xadrez contam com um enorme estoque de conhecimento de posições de partida. Alguns cientistas sustentam que os grandes mestres organizam as informações em blocos que podem ser rapidamente recuperados da memória de longo prazo e manipulados na memória operacional.
· Para acumularem esse corpo de conhecimentos, os grandes mestres costumam se dedicar a anos de estudos aplicado, enfrentando constantes desafios que estendam seus limites. Grandes músicos, matemáticos e atletas parecem adquirir sua destreza da mesma forma, motivados pela competição e alegria da vitória.
fonte: Scientific American Brasil - http://www2.uol.com.br/sciam/
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
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Um comentário:
Parabéns pelo blog, tanto na forma como pelo conteúdo erudito! gostei muito mesmo! pena que não pude conhecê-lo antes para que pudéssemos trocar uma prosa durante o Memorial Severino Sombra.
Mas, oportunidades não faltarão!
Grande abraço.
Eduardo Maia.
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